Sempre junto e nunca igual, para Cristian Duarte em companhia
por Renan Marcondes_lá . textos para danças - Jan 2024
Para pensar o trabalho do coreógrafo Cristian Duarte, é preciso estar atento às palavras: ao invés de afirmar que “tem” uma companhia, lemos (e vemos) que ele está sempre “em companhia” de outros artistas. Sua mais recente peça é marcada pela mesma sutileza do seu posicionamento sobre o que pode significar um grupo, pois o artista parece saber que nunca temos nada, mas que estamos sempre ao lado de muitas pessoas e coisas – visíveis ou não. Em seus últimos trabalhos, não apenas o corpo aparece cada vez mais como expositor de um grande catálogo de informações que se traduzem, de formas mais ou menos perceptíveis, naquilo que chamamos de movimento, mas é crescente o interesse por entender como essas composições particulares de informações se deslocam entre corpos de formas mais ou menos organizadas.
Em “E nunca as minhas mãos estão vazias”, sua mais recente criação produzida com apoio da Lei de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, vemos um grupo de performers das mais diversas formações artísticas executando texturas de movimento bastante particulares, como que escavando formas, dinâmicas e noções de movimento e som bastante diferentes entre si e que transitam de formas muito abstratas, códigos de danças diversas (um grupo maior talvez reconheça um código de sapateado e um grupo menor talvez reconheça uma cena de Self Unfinished, do coreógrafo francês Xavier le Roy), até chegar em gestos e palavras de ordem pública: uma palavra “fora” ou um punho para cima escapam do ambiente da arte e apontam para o campo do cultural, daquilo que é compartilhado e reconhecível por todos. Esses rastros de ação humana vêm de um projeto intitulado Kintsugi (nome da técnica japonesa de reparar cerâmicas deixando evidente as imperfeições). Portanto, com o perdão do spoiler, parece central o evento final da dança, quando uma performer quebra um vaso e deixa seus cacos no chão, pois a peça parece se perguntar justamente como estar junto após um processo – violento - de intensa particularização da vida e desarticulação dos modos coletivos de presença.
A dança se dá através de um coro que se move ao longo de toda peça sempre junto, nunca igual, por vezes habitando uma onda ou outra de mesma intensidade, em um material que nunca se revela como puro improviso ou coreografia partiturada. Essa tentativa de coletividade, dispersa pelo grande espaço da Casa do Povo (SP) com uma luz que evidencia a escala e profundidade da sala de paredes brancas, se permite dividir a atenção de quem olha, sendo protagonista e fundo o tempo todo: é muito fácil se perder em algum movimento reconhecível ou de maior alcance e perder muito do resto, para logo após ser chamado por um som, um movimento em conjunto ou uma mudança de dinâmica geral desse coro. O solo onde se dança torna-se, aos poucos, um caldeirão onde coexistem futebol, moda, dança clássica, carnaval, modernidades, o tradicional, mas também o medo, o grito, a manifestação, a exibição, o grotesco e o privado. Tem o dado de construção e ruína constante dos trópicos, conseguindo a difícil tarefa de ser muito sincero sobre a condição de um Brasil pós governo Bolsonaro, usando inclusive de clichês de brasilidade, e conseguir não tornar a peça um clichê de Brasil em si (talvez para a tristeza de curadores internacionais). O que ela é: uma grande zona - como nosso país (e claro, cabe a você que lê ler essa palavra como “área” ou como “bagunça”).
Talvez por isso haja um dado trágico na peça, como se estivéssemos sempre começando de novo, tentando juntar os cacos e subir a rampa, reconstruir o museu, reabrir o edital, receber o pagamento. Esse dado se vê no impasse entre ensaios de gestos coletivos que irrompem o espaço em sua simplicidade (como correr de um lado para outro em fila) e uma espécie de looping autorreferencial ao qual cada performer está submetido, como uma competição onde não se sabe as regras, o júri e o prêmio (que provavelmente nem existe). Mas é nessa desconversa, nesse trabalho de elaboração constante sobre si – mesmo que forçado - e de descoberta do que está sendo enfiado nisso que cada um de nós chamamos de corpo (não suas matérias apenas, mas seus afetos) que, vez ou outra, reconhecemos algo em comum, decidindo iluminar alguém ou levantar um corpo para, acima dos outros, ser momentaneamente mais visível.
Assim, esse elenco de diversos corpos, formações em dança, gênero e raça jamais afirma (como parecem pedir aqueles que nos pagam, quando pagam) que é a performatividade meritocrática e competitiva do criativo particular que irá nos salvar. Mas também não sucumbe ao princípio conservador que só permite ao corpo que dança se apresentar como proprietário de um saber que seu público não tem – treinado, consciente, controlado, pronto, “limpo” e “sem barriga”. O que faz é partir de ambos os espectros para criar algo que seduz não pela força, mas pelo descompromisso por uma alegria quase infantil de ainda conseguir se mover desenfreadamente em meio à dúvida. Pois, como canta Maria Bethânia nos versos que inspiram o título da obra, “apesar das ruínas e da morte” que marcam a história do nosso país e que vieram para a superfície nos últimos anos, há uma força que permite encontrar em “tudo” o que há ao redor – mesmo naquilo de mais baixo, horrível e duvidoso – o renascimento da exaltação.
Por Renan Marcondes
ENG
Always together and never the same, for Cristian Duarte in company
by Renan Marcondes_lá . texts for dances - Jan 2024
To think about the work of choreographer Cristian Duarte, we need to pay attention to the words: instead of stating that he “has” a company, we read (and see) that he is always “in the company” of other artists. His most recent piece is marked by the same subtlety in his positioning on what a group can mean, as the artist seems to know that we never have anything, but that we are always alongside many people and things – visible or not. In his latest works, not only does the body increasingly appear as the expositor of a large catalog of information that translates, in more or less perceptible ways, into what we call movement, but there is a growing interest in understanding how these particular compositions of Information moves between bodies in more or less organized ways.
In “And never as my hands are empty”, his most recent creation produced with support from the Dance Promotion Law for the city of São Paulo, we see a group of performers from the most diverse artistic backgrounds executing very particular movement textures, as if excavating forms, dynamics and notions of movement and sound that are quite different from each other and that move through very abstract forms, different dance codes (a larger group might recognize a tap code and a smaller group might recognize a scene from Self Unfinished, by the choreographer Frenchman Xavier le Roy), until reaching gestures and words of public order: a word “out” or a raised fist escape the art environment and point to the cultural field, of what is shared and recognizable by all. These traces of human action come from a project called Kintsugi (name of the Japanese technique of repairing ceramics, making imperfections evident). Therefore, pardon the spoiler, the final event of the dance seems central, when a performer breaks a vase and leaves its pieces on the floor, as the piece seems to ask itself precisely how to be together after a - violent - process of intense particularization of life and disarticulation of collective modes of presence.
The dance takes place through a choir that moves throughout the entire piece, always together, never the same, sometimes inhabiting one wave or another of the same intensity, in a material that never reveals itself as pure improvisation or scored choreography. This attempt at collectivity, dispersed throughout the large space of Casa do Povo (SP) with a light that highlights the scale and depth of the white-walled room, allows the attention of those who look to be divided, being protagonist and background at all times: it is very It's easy to get lost in some recognizable or larger movement and miss much of the rest, only to be called by a sound, a movement together or a change in the general dynamics of that choir. The ground where people dance gradually becomes a cauldron where football, fashion, classical dance, carnival, modernities, the traditional, but also fear, scream, manifestation, exhibition, the grotesque and the private coexist. It has the constant construction and ruin of the tropics, achieving the difficult task of being very sincere about the condition of a Brazil after the Bolsonaro government, even using clichés of Brazilianness, and managing not to make the piece a cliché of Brazil itself (perhaps to the sadness of international curators). What it is: a large area - like our country (and of course, it is up to you who reads whether to read this word as “area” or as “mess”).
Maybe that's why there is a tragic aspect to the play, as if we were always starting over, trying to pick up the pieces and climb the ramp, rebuild the museum, reopen the notice, receive payment. This data is seen in the impasse between rehearsals of collective gestures that burst the space in its simplicity (like running from one side to another in a line) and a kind of self-referential looping to which each performer is subjected, like a competition where one does not know the rules, the jury and the prize (which probably doesn't even exist). But it is in this lack of conversation, in this work of constant elaboration on oneself - even if forced - and of discovering what is being embedded in what each of us calls a body (not just its materials, but its affections) that, from time to time, we recognize something in common, deciding to illuminate someone or lift a body to, above the others, be momentarily more visible.
Thus, this cast of diverse bodies, dance backgrounds, gender and race never claims (as those who pay us seem to ask, when they do) that it is the meritocratic and competitive performativity of the particular creative that will save us. But it also does not succumb to the conservative principle that only allows the dancing body to present itself as the owner of knowledge that its audience does not have – trained, conscious, controlled, ready, “clean” and “without a belly”. What it does is start from both spectrums to create something that seduces not through force, but through lack of commitment and an almost childish joy of still being able to move unbridledly in the midst of doubt. Because, as Maria Bethânia sings in the verses that inspire the title of the work, “despite the ruins and death” that mark the history of our country and that have come to the surface in recent years, there is a strength that allows us to find in “everything” what is around – even in that lowest, most horrible and most doubtful – the rebirth of exaltation.